segunda-feira, 26 de dezembro de 2016
O tempo em cores e punhos fechados.
Meu avô já não habita a casa
costumo pensar que o mundo ficou pequeno demais para ele existir,
já que certas existências exigem imensidão e cores vivas para funcionar
soubesse disso
teria usado um estoque de tintas
mas não se pôde prever o desbotamento.
Corro ao atravessar os portões enferrujados
que protegem a memória
tomo fôlego para continuar o caminho
me convenço como num susto de quem levou um belisco
que a vida o aposentou
por conta do bom trabalho que fez a todos nós.
Não adianta
o silêncio passou a ofender
mas parece uma ofensa aceitável
àqueles que não admitem a permanência do luto.
A saudade é mesmo essa casa abandonada
que a gente quer voltar a morar, já sabendo a inexistência.
É aquela cadeira de madeira na cozinha com a perna um pouco torta,
a carteira de couro com fotos de netos ainda meninos,
o cacho de bananas já passadas na fruteira,
a rede na sala que o vento balança vazia,
um quarto com cheiro de naftalina e alfazema.
Tudo leva a mão do abandono mas o tempo cura, o tempo cura tudo,
eles dizem para eles mesmos e para os outros.
A mentira repetida muitas vezes convence a verdade a se tornar parte dela
eu também fiz um mantra
é uma espécie de remédio que não cura mas distrai.
Sou incapaz de aconselhar atalhos se pego caminhos mais longos
só para entender que o tempo não saberia curar
um golpe que ele próprio desferiu.
Por isso pesa uma tonelada e meia beijar as fotografias,
redobra o peso com o esforço para agarrar
vozes, cores e cheiros
e o mar da memória não tem cabelos
nem corpo que dê para sustentar o meu corpo sobre o que não existe mais
nestes planos daqui.
Fui tragada,
sem querer debati braços, pernas
esperneei com a força de mil recém-nascidos
para ficarmos leves, vulneráveis
eu, meu avô, os portões, a casa abandonada
foi preciso
o conjunto da falta que mais me visita
dizer de fora para dentro não se preocupe
vai ficar tudo bem
depois na mesma ordem de dentro para fora
dizer não se preocupe vai ficar tudo bem
ainda que não escute palavra de conforto da boca dos outros
eu juro
meu coração em segredo fala diariamente seu nome.
domingo, 18 de dezembro de 2016
Palpitações
Meu seio esquerdo em tua mão
terreno desconhecido
isolado na linguagem
tua visão logo se volta
muda contra a minha
e as duas desarmoniosas
convivem na mesma casa.
domingo, 10 de julho de 2016
Se a vida for mesmo essa pressa que ao menos os poemas sejam vividos com calma.
Jean-Luc Godard, Band of Outsiders, 1964.
I.
Dividimos o mesmo chão
no mundo impenetrável dos que aparentam certo atraso para compromissos inadiáveis. Não nos cumprimentamos embora já tenhamos tido questionamentos parecidos nunca antes ditos em alto e bom som. Na fila da padaria ou dos supermercados que dividimos suados em horário de almoço tomamos precauções para evitar o toque
a pele tímida
na pele dos outros entre nós nunca existiu contato visual se existiu não há registros além de câmeras de segurança
assistidas por ninguém
puxamos a falha na memória seletiva por gostos mais hostis.
II.
Somos os mesmos embora nascidos de outras mulheres alimentados da mesma ganância engordamos para girar capital engravatados ou à paisana possuímos traseiros arrojados em confortáveis carros do ano
motocas ou bicicletas
também no acessível modelo popular
esquecemos que andar ainda funciona na selva de concreto prestes a nos engolir. Respiramos poeira de escritório nos adaptamos a sobreviver
de coração silenciado
junto aos telefones móveis
em ambientes mais sérios
avisos espalhados: não se pode incomodar! Bom dia breve nos elevadores abafados
cabeças inclinadas
acenos e perguntas superficiais
ensaiadas para não querer saber
oi como vai não prolongue respostas aceitável é o automático e a falta de detalhes é a cordialidade do século XXI. III.
É preciso forçar certas revoluções
burlar o sistema sem se preocupar em ser visto se a vida for mesmo essa pressa que ao menos os poemas sejam vividos com calma. Achamos escrever delicioso mas é uma delícia abafada
entre os relatórios urgentes da mesa.
Nos amassamos e jogamos fora
não nos mostramos pra ninguém.
Se a vida for mesmo esse vencimento acho melhor não irmos de carro vamos começar do começo:
encostamos nossos braços
suados e rimos pedindo desculpa
é que viemos a pé
logo nos oferecemos simpáticos
para carregar objetos
com licença posso ajudar
iniciamos conversa
ignorando possíveis estranhamentos
com interesse demonstrado
satisfeitos em trapacear
no jogo de passos contados
estreitamos laços
nas filas mais cheias.
IV.
Espalhamos os olhos
bastante atentos ao que vai sendo deixado
gravamos rostos e figuras
aquilo que for de mais sensível
é ganho fica entre nós
delicadeza como moeda de troca
nos torna os novos ricos do não material.
Escolhemos o quadro torto
na parede do corredor infiltrado
como souvenir
de exercícios pessoais
saudosismo em território neutro
contendo umidade e cheiro de café.
Lá permanece pendurado contra luz
emitindo chamados inaudíveis
numa língua que nós já tão prontos
traduzimos
e não há relógio algum
que faça o antigo trajeto.
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